quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

SÉRVULO ESMERALDO FESTEJADO PELA GAZETA MERCANTIL DE 28/12/2007

EIS A MATÉRIA

UM COLECIONADOR DE IMAGENS

André Seffrin
Rio

A austeridade do ateliê tem a marca do artista, ou seja, seu apego às formas puras e à disciplina do olhar. O ateliê de Sérvulo Esmeraldo, em Fortaleza, é uma oficina aberta à claridade e aos ventos das manhãs e tardes cearenses. Ali, quase tudo é geometria, quase tudo é linha exata, e predominam o branco, o preto ou o metálico. Ali, são raros os azuis, os vermelhos, os amarelos, e a poesia nasce do movimento, da intuição do artista, do que ele sugere em aço, alumínio ou madeira, como antes sugeria em papel, primeiro nas xilogravuras, mais tarde no buril e na litografia. Não à toa Sérvulo Esmeraldo ama os estudos de matemática, e seu livro de cabeceira, como revelou, é o Manual do engenheiro, de Hersbach.
Recém-inaugurada na Sicardi Gallery, em Houston, a mostra que reúne seus objetos “Excitáveis” não virá para o Brasil. O clima tropical não é propício ao manuseio das peças pelo espectador, movidas por eletricidade estática. Mas será que as salas climatizadas dos museus de hoje não solucionariam o problema? A discussão está aberta. A Sicardi Gallery sedia esta mostra de Sérvulo Esmeraldo porque é, afinal, uma alta promotora de alguns baluartes da arte cinética mundial, a exemplo de Jesus Rafael Soto. Representa também brasileiros como Geraldo de Barros e Regina Silveira. Além dessa exposição em Houston, Sérvulo integra a mostra O(s) Cinético(s), no Instituto Tomie Ohtake.
Nascido em Crato, Ceará, em 1929, Sérvulo Esmeraldo guarda do lugar onde nasceu os elementos que o impulsionaram para a arte. Em entrevista a Dodora Guimarães, em 2000, ele foi buscar esses elementos “no poente e bem próximo às encostas da Chapada do Araripe... No nascente despontava a Serra de São Pedro... Não se via o Crato, via-se o Juazeiro e, ao longe do Vale (do Cariri), até onde a vista alcançava via-se o Morro Dourado (Missão Velha). Estas linhas sou capaz de redesenhá-las ainda hoje. Sou um observador, um colecionador de imagens. Procuro utilizar meu olhar. O que farei de minhas visões são coisas do destino delas e do meu.”
Aos 18 anos já residia em Fortaleza, onde começou a conviver com os artistas locais em torno da Sociedade Cearense de Artes Plásticas. Por essa época, teve uma breve orientação artística de Jean Pierre Chabloz. Em 1951, transferiu-se para São Paulo com a intenção de estudar arquitetura. Aldemir Martins o levou a freqüentar o antigo MAM, e lá Sérvulo entrou em contato com Sérgio Milliet, Arnaldo Pedroso D´Horta, Lívio Abramo, Bruno Giorgi. Trabalhou então na montagem da primeira Bienal de São Paulo, e ali conheceu Franz Krajcberg. Mais tarde, participaria da V, VI e VIII bienais. Em meados dos anos 1950, com bolsa de estudos do governo francês, fixou-se em Paris, onde residiu vinte e cinco anos. No início de seu tempo parisiense, freqüentou a Academia de Belas Artes e o ateliê de Friedlaender. Logo se entrosou com o meio artístico europeu, afirmando-se como gravador, criador de múltiplos e escultor, plenamente inserido no construtivismo europeu, ao lado de Le Parc e outros da mesma envergadura.
Da xilogravura, Sérvulo passou para a gravura em metal (com Friedlaender), isto é, abandonou a figuração que marcou seus primeiros trabalhos no gênero – tipografia, circo, floresta, pássaro, cavalo, concha, vegetal, caracol ou o “caramujo que era um logaritmo”, imagens remanescentes de sua infância nordestina. Pouco a pouco avançou Para o informalismo e finalmente para o construtivismo. Olívio Tavares Araújo percebeu que o “desabrochar de Sérvulo escultor se deu em duas frentes”, a primeira delas, “integrado por objetos abstratos simples, alguns com reminiscências da linguagem das gravuras (tais como jogos com linhas paralelas, oposições entre positivo e negativo, desenvolvimento serial de volumes virtuais), e com uma inequívoca vocação para o múltiplo”. A segunda aconteceu com os “Excitáveis”.
A partir dessas primeiras indagações e até chegar às descobertas mais recentes, se passaram algumas décadas. Expôs em 1986 peças em aço laqueado, cubos, pirâmides, prismas, ou o que chamou de “Sinal”, peça de aço laqueado em vermelho, ou “Tetraedro”, em aço laqueado prata, ou os cubos geminados em aço laqueado preto. Antes disso, a partir de 1977, passou a realizar esculturas públicas para a cidade de Fortaleza (hoje são cerca de 40 delas no espaço urbano da cidade), desde o “Monumento ao saneamento básico”, de 1977, até chegar à harmonia rítmica dos belíssimos planos de “Escultura Fonte’ (1978) e “Monumento ao jangadeiro” (1992). Mais tarde, suas pesquisas resultaram no que chamou de Teoremas, esculturas vazadas expostas em Fortaleza em 2002, tão bem descritas por Fernando Cocchiarale como “apropriações de diagramas de teoremas matemáticos da antiguidade e da modernidade que, despojados de suas referências algébricas, tornam-se imagens sensíveis de idéias abstratas”. Com seu apego à geometria – “a linha como fator determinante”, no slogan que criou para exposição apresentada em 2001 na Múltipla de Arte Galeria, em São Paulo –, seja na escultura, no desenho ou na gravura, Sérvulo foi aderindo aos novos materiais e assim afiou cada vez melhor a lâmina de suas indagações.
Capítulo à parte em sua obra são os chamados livros de artista, até hoje parcamente avaliados pela crítica nacional. Do ludismo de curvas e cores em movimento de Perpignan: variações sobre uma curva, 14 serigrafias editadas em 1973 numa tiragem de 50 exemplares acompanhados de um texto de Jean-Clarence Lambert, a uma caixa-livro chamada Trilogia, com poemas de Péricles Eugênio da Silva Ramos, igualmente do início dos anos 1970. Vale lembrar ainda O nominador, com texto de Jacob Klintowitz, de 1982, e Espacial: escultura pênsil, plaquete precedida de um texto técnico-poético do arquiteto Alex Nicolaeff, 1999.
No que diz respeito à escultura propriamente dita, Sérvulo nunca abandonou seus estudos de linha e luz, centradas no claro-escuro (preto e branco), cujos títulos são bem sugestivos de uma poética do movimento: “Vibrações”, “Calotas” e “Couple”, xilos de 1957, depois “Caatinga” (1958) e “Encontro” (1964), água-forte e buril, respectivamente, por fim “Planos”, “Torção”, “Cone” ou “Construção”, litografias de 1976, já francamente nas águas do construtivismo, quando a escultura nele se realiza em plenitude – uma procura que começou em 1966, com os múltiplos e as esculturas em plexiglass. Nessas gravuras mais antigas, Arnaldo Pedroso D´Horta percebeu ou sugeriu imagens de persianas, fendas ou talhos. Sobre esse aspecto, o próprio Sérvulo esclarece na referida entrevista a Dodora Guimarães: “Minhas primeiras xilos eram figurativas, como os desenhos. Os claros abertos na madeira resultavam em formas inesperadas. De repente, o ‘não representado’ acabou sendo o principal, o valorizado. Quero me referir às formas justapostas que geram formas. Numa obra não existe nada de secundário. O principal é o todo. Acabei optando pelo que via como casual. Das formas nascem formas, parafraseando Bruno Munari.”
De fato, em busca da pura e simples geometria das coisas, ligado a uma poética do movimento e do ritmo, Sérvulo Esmeraldo foi gradativamente desenvolvendo um verdadeiro aprendizado sensorial – tato e olhar –, fundindo à luz natural os sólidos que em sua sensibilidade e intuição afloram. São sólidos cujas linhas se humanizam. São objetos do olhar: cunhas, prismas, relevos, dobras, espirais, fendas ou recortes. Depois, ele ultrapassou o suporte, ou se deparou com a ausência de suporte. E elegeu unicamente a linha, em sua pureza arcaica, sem suporte, frente ao infinito. Inventor de formas cambiáveis, nada mais próprio para um amante da linha pura, do construtivismo cinético, que se deixar encantar pela linha pura e sua dança silenciosa. Aqui chegamos ao que Aracy Amaral chamou, em 1986, de problemática da luz, do ritmo e da progressão das formas nas obras de Sérvulo Esmeraldo.
Quinze anos depois, diante de novos trabalhos do artista, Aracy Amaral concluiu que ele “persegue idéias”, chegando mesmo a afirmar que são exatamente os “Excitáveis” a “contribuição máxima de sua trajetória”, em peças que podem ser consideradas “a mais interessante contribuição brasileira à arte cinética internacional depois de Palatnik, na segunda metade do século XX, e lamentavelmente pouco conhecidas entre nós”. Até quando? Para além dos “Excitáveis”, ficamos agora à espera de uma grande exposição e de um livro que contemple toda a trajetória deste brasileiro que na Europa expôs ao lado de Vasarely, Soto, Morellet, Albers e Le Parc. Um brasileiro universal.


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As primeiras pesquisas de Sérvulo Esmeraldo em arte cinética são do início dos anos 1960, quando trabalhou com ímãs e eletroímãs. Em meados dessa mesma década, criou objetos movidos a eletricidade estática, os chamados “Excitáveis”, caixas em acrílico abrigando dezenas ou centenas de pequenos elementos (fios de lã, recortes de papel colorido, bastões de madeira, pó de enxofre ou grafite, etc) que se movimentam por meio da eletricidade estática oriunda da ação tátil ou sonora do espectador, às vezes com um simples toque ou fricção dos dedos sobre a superfície de acrílico.
Em entrevista recente, ele disse como nasceram os “Excitáveis”: “A origem de tudo: a criança observadora que brincava com pente e pedacinhos de papel; o pente acumulava cargas eletrostáticas que atraiam e repulsavam os papéis. Nos anos 60, recebi uma proposta da galeria Claude Givaudan, para fazer um livro-objeto com três poetas de minha escolha para participar de uma exposição internacional em Nice. Escolhi um poeta de língua francesa: Apollinaire; um de língua espanhola: Neruda; e um de língua portuguesa: Vinicius de Moraes. Decidi que usaria de cada poeta um poema e que cada poema teria uma caixa. Para o de Neruda, tampo o poema tensionado sobre cordas de guitarra que vibravam quando a caixa era aberta; Autonne Malade, de Apollinaire, cada verso foi impresso e introduzido em ampolas de vidro, fechadas a maçaricos, o que dava ao papel um tom outonal. De Vinicius de Moraes, o poema Natividade, que começa assim: “Virgem filha minha/ De onde vens assim/ Com os brincos na orelha/ Fazendo tlin-tlin/ E a saia manchada de cor carmesim?”. Eu não sabia como resolver o problema. O que foi que fiz? Comecei a pensar. Mandei fotografar a página do poema do Vinícius de maneira que ela ficasse numa determinada proporção; de acordo com o formato do livro fiz uma caixa com a foto colada no fundo; cortei folhas de papel vermelho, bem redondinhos, em forma de pétalas, pus dentro da caixa e fechei com um retângulo de acrílico incolor transparente. As pétalas ficavam em cima do poema; quando se passava a mão sobre a caixa, as pétalas começavam subir e cair sobre o texto. Este foi o primeiro ‘excitável’ exposto. Outros surgiram espontaneamente. Aqui, no Brasil (é uma frustração minha) eu não tenho dado continuidade a este tipo de trabalho, por razões técnicas. A umidade do ar impede o fenômeno físico. Tenho feito alguns, uns três ou quatro, no máximo, mas já fiz mais de 200 objetos ‘excitáveis’ como estes desde 1967. Este com o poema de Vinicius foi o primeiro a ser exposto na Primeira Exposição do Livro-Objeto de Nice, promovida pela Galeria Claude Givaudin; com um cartaz muito bonito e um catálogo interessante, feito com rodelinhas de papel dentro de um tubo transparente.”

AS

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